JORNAL 3 DE MARÇO - Poesia
ENCONTRO COM A POESIA
Penafiel à vista
Em Agosto de 2084, comemora-se o 1.º centenário do início da minha actividade como poeta. Por isso não será demais começar desde já a festejar tal acontecimento. E nada melhor que publicar neste blogue uns quantos poemas sobre a minha cidade de Penafiel. Sobre a minha irreconhecível cidade de Penafiel.
Então é assim:
Deambulei urbanamente sozinho
e sempre de costas voltadas para coisas
que no passado eram ruas.
Fiquei-me pelas luzes da lua
que são um pouco da minha rua, onde moro e descanso.
Mas um dia destes
nem aquela travessa se atravessa no meu caminho.
Terá sido engolida, violada por espelhos
que julguei não existirem.
Nunca pensei.
Durante anos
vivi e revivi o riso admirável desta terra.
Descobri depois a inversão
daquela admirável palavra.
Choro alguns pedaços despedaçados
por ousadias negras e cruéis papéis.
Tudo por aí... à mostra.
Vou ao café
tentar ver Penafiel mais perto.
Mas não recebo o mínimo sinal
de que esta cidade se possa beber de um só trago.
É dura de roer.
Tem pedra a mais
por isso já não recito versos encostado a uma árvore.
Limito-me a apunhalar as folhas
por elas terem caído em forma de granito.
O sol negro aplaudiu
a chuva branca fez-me muita falta.
E fico doente... por não poder ficar doente.
Sorvo o ar desta terra logo pela manhã.
Sabe-me a lixo de véspera.
Só espero que uma dúzia de pombas
apanhe o voo de umas tantas horas escritas no vento.
para não caírem em desgraça.
Não há barcos na Praça Municipal
mas há água que chegue para afogar vaidades indecentes.
Aquele Café Bar
deu um salto para trás.
E agora?
Hoje tudo anda para a frente
menos o belo, o bonito
e o bem estar que vem do sol.
E o lápis preto
traça-me ventos e gravuras negras.
Não se passa nada naquela tela.
Só corvos se preparam
para chafurdar naquela praça da minha terra.
E agora?
O que vou fazer com este chão
aqui nesta cidade
nestas margens de rua?
Nada.
A menos que o devolva à rapaziada
para se rir um bocado.
Mas antes disso
tire-se umas quantas fotocópias
não vão as pedras gostarem da festa.
Perguntaram-me um dia
Se eu gostava da minha terra.
Eu disse que não gostava de Penafiel
porque gostava até à exaustão da minha cidade.
A ver se a gente se entende.
Gostar muito é gostar nem um pouco.
Sou um corpo fora do meu corpo
por isso é que a minha cidade rejubila
quando entro em desacordo com ela.
Somos gémeos e ninguém sabe disso.
Lembro-me da esplanada do Café Bar
em plena Praça Municipal
a roçar o monumento central.
Uma groselha, um café de doze tostões
com a possibilidade de dois dedos de televisão.
Éramos todos poetas, éramos todos pintores
éramos todos amadores daqueles locais
anais do nosso bairrismo
pequeno que ele fosse
porque éramos crianças pequenas ... logo poemas.
Fico estático
diante desta terra, deste lar, deste canto.
Diante desta imensidão de ignorância.
não tenho coragem de passar
por entre esta floresta de árvores parolas.
Caio no vício de ter medo
que o mundo me mate
por ter aberto a boca de espanto.
Santo deus.
Azedou-se-me o pensamento
aqui, neste lugar e a esta hora.
só porque pensei que os arrogantes
podiam ser gente igual a tanta outra gente.
Mas não são, nem podiam ser.
Porque a arrogância
veste-se todos os dias de maneira diferente
e a nudez das coisas está ali à vista de todos
ancorada no seu gigantesco umbigo.
Serviram-se de Penafiel
para me atraiçoarem.
Foi uma traição de rua
apesar dos constantes avisos da lua
tramada em noites prenhes de sujidade.
Nem o nevoeiro que me ama sobre todas as coisas
chegou a tempo de me salvar desta tempestade em dó maior.
Ficou a vigorar um regime em dó menor
As flores que se cuidem.
Ontem Penafiel era um livro de poemas.
Hoje é um manual de figuras obscenas
grandes e pequenas.
Nunca entendi porque é que
menos por menos ... dá mais.
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