24 setembro, 2006

Os miserabilistas e os pintores cor de rosa

Sem querer ritualizar gestos de pessimismo, creio ser impossível hoje a qualquer pessoa informada sentir-se tranquila diante do caminho que a nossa sociedade está a trilhar. O espírito do nosso tempo, como diria o filósofo francês Michel Maffesoli, está cada vez mais “permeado pelo trágico”.

Não vou rotular o estado da sociedade portuguesa de trágico. Não, longe disso. Sem ser uma sociedade perfeita, o nosso país já esteve de facto bem pior. Portugal e os portugueses evoluíram muito desde há uns tempos a esta parte. Disso não restam dúvidas.

Mas toda a gente sabe também que o país se desenvolveu a várias velocidades. Que as assimetrias sociais cresceram e se agudizaram. Que cada vez o espaço entre pobres e ricos se alargou. Toda a gente sabe disso. E sabe que por via disso as opiniões dos portugueses acerca do estado do nosso país divergem. Que a opinião de cada um estará de acordo com a sua situação, como seu modus vivendi. Diferentes situações, logo pontos de vista diferentes.

Não tendo em conta a opinião de políticos, de jornalistas e outros fazedores de opinião, que estão contra ou a favor disto ou daquilo, consoante a sua cor partidária ou protagonismos, há decerto pessoas que são capazes de dizer que o nosso país está uma desgraça.

Há pessoas para quem a sociedade é adversa, e que por isso o quadro que pintam deste país só pode ser negro, ou no melhor das hipóteses, cinzento. Haverá por outro lado situações em que um cidadão sendo um privilegiado da sociedade, tem com certeza uma outra visão do seu Portugal, logo pinta o seu quadro com tons mais a puxar para a cor de rosa e outras cores mais alegres.

Por isso é que eu compreendo perfeitamente que um cidadão que por todos os motivos e mais alguns até se encontre muito bem posto na sociedade, se encarnice todo com os críticos deste país. Alguém de bom senso que esteja bem colocado nesta sociedade se vai preocupar com eventuais números negros que possam sair de uma estatística, de um estudo, de um diagnóstico, de uma sondagem ou de uns censos? Não. Claro que não. O que ele quer, o que ele mais deseja, é que não lhe doam as costas.



Ainda agora tive uma conversa com um amigo meu, que muito preso, por sinal um bom “pintor”, que até estará muito bem de vida (não tenho nada com isso, atenção), diz muitas vezes que somos um país de críticos. Que somos uns miserabilistas. Que passamos a vida e o tempo a dizer, por exemplo, que justiça não funciona, que o ensino não presta, e que a saúde vai de mal a pior. No ponto de vista deste meu amigo “pintor”, o país até está muito bem. Estará.

Este meu amigo “pintor”, que se calhar ganha mais do dobro em contos que muita gente ganha em euros por mês, que se coloque na pele de um cidadão que tem de se governar com o ordenado mínimo nacional para ver como é. Talvez não fosse tão optimista. Talvez não fosse tão crítico dos miserabilistas, catastrofistas ou pintores de quadros pretos. O meu amigo que me perdoe, mas há pessoas que falam de barriga cheia, e o resto são cantigas.

Sem ser exaustivo, eu já agora gostaria de colocar aqui alguns números (de fonte segura) que dizem respeito à justiça:
Em Portugal em 1992, um tribunal despachava 117 processos e hoje despacha menos de 70. Em 1992 havia 6000 funcionários de justiça, e em 2001 esse número era de cerca de 9500. Em Portugal há 3,2 tribunais por 100.000 habitantes, em Espanha há 1,3 e em França há 0,8. Portanto em Portugal há 4 vezes mais tribunais que em França.
Os funcionários administrativos de justiça, que temos em Portugal por 100.000 habitantes são 93,5 %, quando em Espanha são 89,2 % e em França este número fica-se nos 26,1 %. Quanto a juizes também por cada 100.000 habitantes, em Espanha há 10, em França há 11 e em Portugal o número cifra-se em 14. Esclarecedor, quanto ao funcionamento da justiça em Portugal. E nesta matéria muito mais haveria a dizer.

Quanto ao ensino em Portugal, os números andam por aí nas primeiras páginas dos jornais. Basta olhar para eles. Eu só pergunto: de quem é a culpa de tantos chumbos na matemática e no português? A resposta é clara e inequívoca: dos professores, de quem havia de ser. Dos professores portugueses que são os terceiros mais bem pagos da OCDE, segundo uma notícia recente da televisão.

E a saúde em Portugal como vai? Vai bem. Só que ainda há cidadãos que vão para a porta dos Centros de Saúde de véspera para terem uma consulta médica no dia seguinte. Depois porque razão há dois sistemas de saúde para cidadãos dos mesmo país? É que uns são os funcionários públicos que só pagam 1 por cento do seu vencimento para o Serviço Nacional de Saúde, os outros são os “outros”. Que pensa o meu amigo “pintor” da saúde em Portugal quando se fecham urgências e maternidades e se abrem salas de chuto e salas de injecção assistida para drogados? E as taxas moderadoras? A quem são aplicadas? Não são aos ricos, com certeza. Esses têm rendimentos suficientes para se deslocarem a clínicas privadas e nunca porão os “cotes” nos atulhados Centros de Saúde.

Depois somos uns críticos, somos uns miserabilistas.

Com certeza que eu e o meu amigo “pintor” não vivemos no mesmo país. Eu vivo num país que tem cerca de 500 mil pessoas sem emprego , 200 mil cidadãos com fome e dois milhões de almas no limiar da pobreza. Ele viverá num país que não passa de uma galeria de arte, que só expõe quadros coloridos.

Ficou por contar a história de um outro amigo meu, também “pintor”, que quando viu tanta gente de férias no Algarve, disse alto e bom som: “Afinal isto não está tão mal como dizem”.

Valha-me Deus, dai-me paciência, que a que eu tinha... já foi.

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