ESPAÇO FICÇÃO - A Escrava de Córdova
A ESCRAVA DE CÓRDOVA
A mesa de honra já estava composta para mais uma sessão de apresentação do romance “A Escrava de Córdova” de autoria de Alberto Santos, presidente da Câmara Municipal de Penafiel. Desta vez o evento preparava-se para se iniciar numa pizzaria em Castelo de Paiva.
Estavam sentados: o advogado Lobo Xavier, o médico Almiro Mateus, o cronista Alfredo de Sousa, o jornalista Tito Couto e Paulo Teixeira, presidente da edilidade paivense, este na qualidade de anfitrião.
Era de facto uma mesa de alto nível. Faltou o jornalista “georgiano” José Rodrigues dos Santos ausente no Cáucaso. Eram importantes nomes da política e das letras, mais ou menos inseridos na matéria que ia ser tratada. Tudo gente que de uma forma ou outra, apadrinhou o lançamento deste primeiro trabalho do autarca penafidelense. Uns ou outros estiveram nas apresentações no Palácio da Bolsa, no Porto, no Mosteiro de Paço de Sousa, na superfície comercial Feira Nova e na Apadimp, durante a Feira do Livro.
Faltava a figura principal. Faltava o “culpado daquilo tudo. Faltava o autor de “A Escrava de Córdova”. Faltava o Dr. Alberto Santos.
Eram 21,30. No ar ainda pairava o aroma a pizzas. Daquelas em que o queijo estica, estica, estica, que parecem pastilhas elásticas, mas que, quentes e estaladiças, acompanhadas por umas “colas”, marcham que é um mimo.
Na assistência, viam-se muitos rostos conhecidos do autor. Vereadores, deputados municipais, presidentes de junta de freguesia do concelho de Penafiel. Presidentes de várias instituições, tanto de um lado, como de outro do rio Douro. Muitas e coloridas gravatas. Alguns belos e bronzeados decotes e também gente anónima, que veio saber o que podia haver para além de uma saborosa pizza depois do jantar.
Chegado Alberto Santos, que cumprimentou toda a gente com uma aceno de simpatia, desculpouse do atraso e deu-se início à quinta apresentação das 466 páginas de boa literatura.
Levantou-se então o Dr. Lobo Xavier, na qualidade de presidente da mesa de honra, para abrir a sessão solene e cultural.
- Meus amigos, boa noite a todos. Grato pela vossa presença. Estamos aqui para mais uma cerimónia de apresentação do livro de Alberto Santos “A Escrava de …
- Altooooooooooo, parem imediatamente! – Ouviu-se uma voz no fundo da sala.
Como que impulsionados por uma mola, todos os presentes se viraram para trás. Os elementos da mesa levantaram os olhos em direcção do local de onde veio a voz. Lobo Xavier procurou por cima dos óculos, lobrigar o autor de semelhante ousadia.
- Pode lá ser uma coisa destas? – murmurou com cara de poucos amigos.
Todos naquela sala ficaram silenciosos e estupefactos quando viram surgir por entre a assistência, uma bela e perturbante mulher.
- Vamos parar com isso – Voltou a ouvir-se a voz feminina.
- Mas quem é você para nos dar essa ordem. Quem é você para mandar parar esta cerimónia? Perguntou o presidente da mesa num misto de surpresa e irritação.
- Sou Ouroana.
- Ouroana?!!! – estremeceu Alberto Santos, saltando do seu lugar.
- Sou Ouroana. Nascida em Entre-os Rios, há mais de mil anos. Filha de D. Múnio Viegas, governador da Anégia e estou muito decepcionada com o local que Alberto Santos escolheu para apresentar o seu livro.
O autor de “A Escrava de Córdova”, aproximou-se da bela rapariga, que entretanto se tinha chegado para junto da mesa de honra.
- Ouroana, por acaso eu tenho cara de Almançor? Será que este local é Santiago de Compostela? Achas que está aqui alguém com cara de ir profanar algum sepulcro, para agires dessa maneira?
O rosto harmonioso e ligeiramente arredondado virou-se para Alberto Santos, mostrando sinais de indignação.
- Meu caro Alberto Santos, eu sei muito bem onde estou. E dava tudo para não estar. Mas por isso é que venho dizer-te que não é bonito que faças a apresentação do teu primeiro trabalho literário num local como este. Este lugar não é digno de um evento destes. Aqui não cheira a letras, não cheira a livros. Aqui só cheira a comida de plástico.
- Em qualquer parte se pode fazer arte – respondeu Alberto Santos, levando as mãos ao cabelo um tanto em desalinho - Artistas e intelectuais, homens de letras não frequentam apenas museus, bibliotecas, livrarias ou exposições. Muitas vezes um espaço, por mais estranho que nos possa parecer, pode ser um belo pretexto para se fazer cultura.
- Não é bem assim. Há locais mais próprios para este tipo de realizações. Um livro é um livro, uma pizza é uma pizza e uma biblioteca, por exemplo é um sinal mais para eventos como este. Um dia destes, ainda te vou encontrar numa churrascaria, numa hamburgaria ou numa ensurdecedora discoteca.
- Não vejo onde possa estar o problema – retorquiu o neófito escritor ajustando o nó da gravata cor-de-rosa.
- Não vês, mas está bem à vista. Estiveste muito bem no Palácio da Bolsa no Porto e muito melhor no Mosteiro da tua freguesia natal. Se bem que ali tivesse faltado, por exemplo um coro gregoriano, para o brilho ainda ser maior. Na Apadimp foi fraquinho, como sabes e do Feira Nova, nem é bom falar.
- Não te conhecia tão preconceituosa.
- Não é preconceito, é bom senso. Algo que de vez em quando te esqueces de usar.
A cerimónia de apresentação do livro de Alberto Santos, que tinha sido interrompida logo no seu início, parecia ter-se transformado numa espécie de “ajuste de contas” entre as duas mais importantes figuras desta obra literária. O diálogo entre Ouroana e o escritor, estava a adensar-se, deixando todos os presentes na sala expectantes e pregados nas suas cadeiras à espera para ver o que aquilo dava. Atento ao que se passava, Lobo Xavier convidou Ouroana a sentar-se junto dos convidados, ao que ela negou.
- Muito obrigado, eu sou uma árvore. É de pé que eu aguento as tempestades, os vendavais e todo o tipo de mau tempo.
- Ourona, minha linda princesa, chegaste aqui com uma pedalada à Eddy Merckx. Interrompeste esta história toda, mas eu não vejo como possas impedir de fazer o que se pretende aqui e agora – desafiou Alberto Santos.
- Ó meu caro senhor, eu não sou mais aquela menininha cativa, que por tudo e por nada era raptada. Até estive para ser freira. Eu tenho os meus poderes. Se me desobedeceres, estás feito. Chamo o meu pai e o Ermígio, que andam mortinhos por te chegar a roupa ao pelo, por teres enchido aquelas páginas todas a dizer maravilhas dos mouros.
- Ó minha cara senhora, o facto de teres sido a principal personagem do meu romance, não te dá o direito de vires aqui armada em Padeira de Aljubarrota. Eu estou a receber muitas solicitações dos mais diversos locais, para apresentar este trabalho. Vou onde houver potenciais leitores interessados em “viver” um romance de amor protagonizado por ti e pelo teu amado árabe Abdus. Chega para te convencer?
- Não, não. Por isso mesmo. Esse amor, não foi um amor qualquer. Foi um grande amor. Foi algo superior. Foi mais belo que o de Pedro e Inês ou Romeu e Julieta. Só o de Cleópatra e Marco António é que se aproxima. Foi um amor que ultrapassou tudo e todos. Religiões, culturas e fronteiras. Um amor que não pode ser vulgarizado, reduzido à banalidade ao ser apresentado em lugares como este.
- Ouroana, se o amor não conhece fronteiras, como muito bem afirmaste, a cultura não será a melhor âncora, o maior elo de aproximação de pessoas e nações, independentemente do espaço físico que ocupam?
- Gostei disso Alberto Santos. Foram bonitas de facto essas palavras. Mas eu sinto que não estás a ser correcto contigo próprio. Sinto que não andas a sentir Penafiel, como devias e diz um slogan que eu cá sei.
- Porque falas assim minha linda cativa? O que te move não será outra coisa? Não estarás tu zangada pelo facto de eu ter “morto” o teu Abdus, pelas mãos de teu pai?
- De facto foste muito reles. Aquilo não se faz. Já algum dia se viu, o sogro matar o seu próprio genro? Nem nas novelas da TVI. O meu pai quando soube, ficou às portas da morte. Não entrou porque teve acompanhamento psiquiátrico. Estava a ver que ia fazer companhia ao Almançor.
- E como souberam vocês que foi o teu pai que matou o teu marido? – instou Alberto Santos franzindo o sobrolho.
- Desembolsando 15,93 na livraria Reis. Tão simples como isso.
- Mas podias ter ido ter comigo que eu te arranjava um exemplar com dedicatória e tudo.
- Ia ter contigo ao Feira Nova por exemplo, que foi quando soube, não era? Comprava uma garrafa de óleo, duas latas de sardinha, três melões e à saída adquiria o teu livro com dedicatória e tudo . Era um lindo serviço – sorriu Ouroana.
- Também não exageres.
Bom mas isso são contas de outro rosário. Eu estou aqui para tentar demover-te deste teu intento. Estou aqui para te dar conta da minha decepção. Penso que a freguesia sede do concelho de Penafiel, jamais te perdoará. Olha não vás tu senti-lo já nas próximas eleições autárquicas.
- Eh lá. Isso até parece praga, que me estás a rogar. Queres ser mais objectiva, se fazes favor?
- É tudo tão claro, tão óbvio, tão simples, que parece impossível que não tenhas percebido. Apresentaste o livro no Porto, em Paço de Sousa, em Guilhufe, em Milhundos e agora preparas-te para fazê-lo em Castelo de Paiva. A pergunta é esta: E a cidade de Penafiel, ficou de fora porquê? Cidade onde está localizado o teu posto de trabalho, que te dá o pão a ganhar. Não pensaste nisso? Que hão-de dizer os penafidelenses daquela freguesia? Para que serve a Biblioteca que o Justino fez com tanta dificuldade? Até o…
- Alto e pára o baile – interrompeu Alberto Santos com a paciência a querer atirar-se da janela – Bem me parece que as danças do sol e da lua fizeram estragos na tua cachimónia. Então Paço de Sousa, Milhundos e Guilhufe não são terras de Penafiel? Anda por aí um bairrismo que já não se usa.
- Já estava à espera dessa. Ser bairrista agora é defeito. Entendes então que o que eu defendo é puro preciosismo? Não achas então que a cidade devia ser uma das tuas prioridades?
- Até podes ter alguma razão, mas não me parece que por causa disso, eu venha a ter problemas de consciência, ou perder o sono. Nessa matéria estou à vontade. Foi feito o que devia ser feito.
Olha, já agora, tu, que já disseste que eras bairrista, diz-me de onde são naturais estes teus amigos que te acompanham na apresentação do romance? São todos de Penafiel, não são? Efeitos da globalização, se calhar!
Minha querida anegiense, eu não digo mais nada. Só queria saber mais uma coisa. Como é que soubeste disto? Quem é que te põe ao corrente do que eu faço ou deixo de fazer?
É gente que não anda tão distraída como tu. Lembras-te do alegre e simpático judeu Ben Jacob? Aquele que pôs Ermígio de boca aberta com tantas histórias e com tanta sabedoria?
- Lembro muito bem. Foi ele que nos forneceu os porcos para churrasco, as loiças e os bonés “Sentir Penafiel”, utilizados no mega- convívio do dia dos avós no Pombal, quando fomos todos a Fátima.
- Pois é ele que me põe a par de tudo o que vai acontecendo. Corre este mundo e o outro em negócios. Compra aqui, vende acolá e sempre que há novidade, liga-me para o telemóvel, ou manda-me um e.mail, Agora anda muito entusiasmado a vender computadores. Há dias entregou-me lá em casa um “Magalhães” para a minha filha que tem 1006 anos.
De repente tocou o telemóvel. Ouroana retirou-se um pouco e atendeu. Escutou em silêncio a mensagem que chegava do outro lado. Depois…
- Falai no Mendes. Era ele, o Ben Jacob. Ligou-me a dizer que já tinha arranjado o vinho verde para levar para a taberna Asafi, do seu amigo Musá em Lisboa. Disse para não me esquecer de lhe levar umas pizzas daqui deste lugar que, diz ele, são baris. Ainda melhores que as famosas “jawdâdas” do seu amigo taberneiro lisboeta.
Ouroana não voltou para junto da mesa. Ensaiou alguns passos em direcção da porta desaída.
- Vou-me embora, esperando que esta conversa tenha servido para alguma coisa, meu caro escritor. E não te esqueças que as tuas responsabilidades como autarca, político e cidadão aumentaram. É bom que percebas isso…
A bela cativa, sacudindo os seus longos e loiros cabelos, ainda chamou Alberto Santos junto de si e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Mais ninguém na sala ouviu. Apenas perceberam que Ouroana retirou do pescoço o fio que trazia desde que nascera e o colocou em volta do pescoço do autor de “A Escrava de Córdova”…
PS. Fica um pedido de desculpas pelo “abuso” da utilização dos referidos nomes.
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